Fátima (2011)

Os seis de Fátima By Luís Santos


No início… bem, a verdade é que já não me lembro bem como é que foi! Terá sido, certamente, numa manhã de um sábado ou de um domingo qualquer, meio cinzento, quem sabe?, e no meio da vereda do Trancão, naquela que terá sido a única vez em que de facto conseguimos pedalar quase todos juntos (o Fernando, o Alípio, o Luís, o João Carlos, o Pedro, o Carlos Machado e eu – o Carlos Avelino ainda não se tinha unido à malta, o Helder, esse, estava onde continua a estar, na caminha a ver ou a imaginar os outros a pedalar, e o André também não terá ido dessa vez), esta alma lembrou-se de lançar a ideia… e que tal um dia irmos até Fátima?

Mais uma vez, sou obrigado a reconhecer que não me lembro muito bem como foi a reacção dos restantes BTTangas. Na altura, confesso, nem nome tínhamos. Creio mesmo que naquele dia mais não éramos do que um grupo reunido pelo Alípio e pelo Fernando, a quem passarei a chamar carinhosamente de piu-piu, mas essa é uma história que só mais à frente vocês – verdadeiros heróis, porque ler esta pretensa crónica vai ser obra – vão compreender. Dizia eu que seríamos apenas um grupo de amantes, uns mais profissionais e antigos praticantes do que outros, do BTT. Mas não um grupo como somos hoje. Nada disso. Conheciam-se melhor uns do que outros. Contudo, não tínhamos o espírito que temos hoje. Nem sequer nos conhecíamos como hoje. Uns aos outros. Creio mesmo não mentir se disser que o piu-piu era, à semelhança do que acontece hoje, o grande animador do grupo, preocupando-se em manter a malta a sorrir e a pensar em tudo menos nas dores que eventualmente possa estar a sentir. Sim, o piu-piu é assim mesmo, uma espécie de guru dos tangas. Ele e o Codinha, Alípio de nome próprio.. Mas, voltemos atrás… pronto, foi assim numa manhã de um sábado qualquer que surgiu a ideia que, aos poucos, foi sendo assimilada e assumida por todos. Mas, para que ela um dia se tornasse realidade, era preciso que o pessoal – aqueles que depressa se apressaram a garantir a sua presença – estivesse preparado para tal obra de arte e, para isso, para isso era necessário treinar alguma coisinha. E foi o que fizemos.

De tretas a tangas…

Com a regularidade que nos é permitida, embora, como já disse, pense que nunca mais conseguimos pedalar todos juntos, começámos então a treinar para o objectivo Fátima. Primeiro a rolar com a necessidade de ultrapassar as armadilhas que a vereda do Trancão coloca a todos os que por ela se aventuram; depois a explorar um pouco mais o percurso com incursão pela Mata do Paraíso – nunca mais vou esquecer a primeira vez que lá tentámos ir juntos e que fomos obrigados a voltar sem lá termos conseguido chegar, como também não esquecerei o famoso Cai Bem que se toma naquele café da Granja… que bem que caiu nas nossas goelas sempre que por lá parámos…
O espírito de grupo, esse, tal como a amizade, penso, foi sempre crescendo à medida que as pedaladas aumentaram. De tal forma que um dia alguém se lembrou de que necessitávamos de um nome, até porque, diga-se, íamos começar a inscrever-nos em provas e, assim, o melhor era fazê-lo enquanto equipa. BTTretas foi a primeira escolha consensual. E foi o nome que demos como certo até que um dia o João Carlos nos deu a brilhante notícia. Alguém dele já se havia lembrado e, mais do que isso, essa mesma pessoa ou esse mesmo grupo até um blog tinha criado… Os nossos Marques, homem de forte concorrência, e Fonseca, homem socialmente seguro, lá foram obrigados a mudar o nome às suas últimas criações – o primeiro do grupo fechado no Facebook, o segundo de um blog – sim que a malta adere com relativa comodidade a estas coisas do mundo virtual. Mas que nome iríamos adoptar? Pois confesso que não sei da identidade do criador. Bem me lembram que o esboço do logo foi desenhado numa sessão de formação de powerpoint onde Codinha e piu-piu partilharam mesa. Então não é mais interessante tratar da nossa imagem de marca do que ouvir alguém a falar daquilo que já sabemos?!? Foi o que eles fizeram… Associando-nos às tangas – fio-dental é algo vulgarmente utilizado, portanto – e assim ficámos Mais uma vez, com alguma discussão democrática, adoptámos o nome BTTangas. Esboço feito, entregou-se a obra ao criador e o menino André, cansado de tanto pedalar virtualmente connosco, ele que afinal se veio a descobrir mais tarde até ser proprietário de uma razoável máquina, lá encontrou inspiração para dar vida ao logo.

No entretanto, diga-se, já alguns de nós se tinham aventurado numa primeira prova. Em Salvaterra de Magos. Não correu mal, digo. O último de nós, eu mesmo, demorou duas horas e meia, penso, a percorrer os 40 quilómetros da dita. Se bem que as duas piores bicicletas da prova estavam em nossa posse. Melhor dito, na minha – um exemplar da primeira edição do Lisboa Bike Tour – e na do piu-piu – confesso nunca ter sabido a origem da dele. E de tal maneira isto é verdade que, nessa mesma prova, o Tanga Marques se lembrou de colocar nomes às ditas. Mas deles, dos nomes, admito já nem me lembrar. Melhor, lembro-me apenas da D. Alice, distinta senhora que carregava o piu-piu sempre que ele queria dar umas pedaladas.

O tempo foi passando. E alargámos horizontes. Explorámos as ciclovias de Lisboa. Abordámos Monsanto. Primeiro de forma suave. Depois mais agressiva, tentando ultrapassar algumas «paredes» mais direitas. Não sem que algumas dessas viagens ficassem marcadas por alguns episódios dos quais ainda hoje bem nos lembramos. E chegámos a Sintra. A primeira vez num grupo mais restrito – o piu-piu, o Alípio, o Fonseca e o Machado – que se aventurou numa subida nunca antes por nós experimentada e a segunda num grupo igualmente de quatro mas num percurso mais longo – ao todo foram 71 quilómetros desde a estação dos comboios de Sintra até ao Parque das Nações, onde nos esperou uma mini preta… Fomos a uma prova ao Sobral de Monte Agraço. E a outra ao Magoito. Nunca todos. Mas sempre os que naquele dia podiam. Sempre com esforço e muitas cãibras à mistura. Mas já ninguém tinha dúvidas. Estávamos uns verdadeiros tangas e honrávamos o nome do grupo. Tanto que no dia de umas quaisquer eleições, marcámos como objectivo chegar a Santarém. Sim, porque o piu-piu estabeleceu um programa de treinos a sério… Datas, destinos, quilometragem, grau de dificuldade… E quase lá chegámos. A Santarém, quero dizer. Faltaram apenas uns 15 quilómetros. Nada que uma boa garrafa de tinto e uma óptima sopa da pedra não tivessem substituído na perfeição. Num restaurante de cujo nome já não me lembro, mas de cujo proprietário não esquecerei nobre atitude – «Não entram porque estão vestidos assim? Isso é que era bom! Entram sim! Lá fora é que não os sirvo!», disse. Nós entrámos. Até porque o senhor disse depois ter sido praticante de cicloturismo no grupo desportivo da EPAL durante mais de uma década. Estávamos em casa, portanto.

Primeiro o Marques, depois o Machado

Nos entretantos, ganhámos mais um Tanga. Sempre com estilo, o Avelino juntou-se a nós. Embora, infelizmente, nessa altura já tivéssemos perdido temporariamente o nosso grande Marques, que numa aventura pela Mata do Paraíso se perdeu de amores por um qualquer pedaço de terra que lhe apareceu à frente e o obrigou a ficar de baixa um bom tempinho – graças a Deus já o temos de volta e o Sobral, o de Monte Agraço, já levou com ele e tudo!

Mais tarde, para piorar mais as coisas, ainda ficámos sem o nosso grande Mancha, dado que, num dia qualquer de uma semana de cujo número me já não lembro mas que tinha tudo para ser qualquer coisa de bom, uma exímia mas pontualmente incauta condutora se esqueceu de travar quando viu o Machado a estrear a sua nova Vespa e zás… atirou-o literalmente para a mesa da sala de operações do Hospital Ortopédico da Parede. A verdade é que ele está a recuperar paulatinamente e, quer ele e nós também, qualquer dia está de volta às pedaladas.
O André e o Helder, esses, andavam quase sempre ausentes. No fundo, mantiveram o estado deles.

E pronto, foi assim que ficámos os seis. Os que iriam cumprir o objectivo. Nos dias 8 e 9 de Outubro. O piu-piu e o Alípio, mais do que qualquer um de nós, trataram de organizar toda a logística da coisa. Marcação do hotel em Alcanena para dormirmos, cativar as esposas para o apoio necessário, incluindo os pontos de encontro no primeiro dia, etc. O João Carlos tratou do percurso, sempre com o seu GPS agarrado ao guiador. O Fonseca, confesso, não sei o que fez. Esperem, tratou de arranjar uns cinco walkie-talkies para que, em caso de alguma fuga ou atraso inesperados não falhasse, pelo menos, a comunicação entre nós. Do que fez o Avelino também me… esqueci. Eu? Limitei-me a obedecer-lhes… nada tinha feito!
E lá fomos nós. Vamos?...



Do furo que veio de casa…Lembro-me que estava cansado. Tinha chegado da Turquia no dia anterior. Creio que pouco depois da hora do almoço. Mas pior, penso, estava o João Carlos, que tinha estado enclausurado na Sardenha durante uma semana e só tinha chegado a Lisboa à noitinha. Tinha, no entanto, um factor extra de motivação – ia rodar a sua última aquisição.
Ainda na noite de sexta-feira, dia 7, encontrei-me com o piu-piu e o Alípio para a entrega das mochilas que a Susana e Patrícia iriam levar com elas no 4x4 da família Codinha, carro que nos iria dar apoio nos dois dias, bem como o 4x4 da família Fonseca.
Às sete horas lá estava eu à espera do piu-piu. O Sol tinha certamente nascido há muito pouco tempo. A iluminação pública ainda estava ligada. E, embora algo tímida, tinha-se abatido sobre o Parque das Nações aquela neblina matinal baixa, uma espécie de nevoeiro incompleto. Sem muita pressa, lá fomos até ao ponto de encontro. Ao nosso ponto de encontro de sempre. Não digo onde é porque isto de fazer publicidade à borla não tem cabimento algum! Principalmente a uma multinacional. Aos poucos juntamo-nos. Quem quis ainda tomou o café da ordem. E, depois da foto da praxe, a que marca indelevelmente o início da nossa grande expedição, aí fomos nós. Quais Loucos de Lisboa.

Os primeiros quilómetros conhecíamos nós. Muito bem, aliás. Embora, admito, há já algum tempo não metêssemos lá… as rodas. E tudo correu normalmente. A rolar. Tentando manter um ritmo razoável. Mas sem entrar em loucuras. Contudo, pouco depois da Granja, fomos obrigados a parar por causa de problemas mecânicos. Pela primeira – e única, sublinhe-se – vez. Um furo. Engraçado, até, é que o mais certo é que o furo tenha vindo de casa, porque o piu-piu, dono da dita senhora, esta mais nova e esbelta do que a D. Alice, já no ponto de encontro tinha reparado que a rodinha estava a necessitar de uns sopros. Sopros que ele, claro, lhe deu. A verdade é que ela, a rodinha ou, se quiserem que seja mais preciso e conciso, a câmara-de-ar devia estar mesmo a dar as últimas e, por isso, nem aqueles sopros lhe valeram. E… obrigou-nos a mudá-la. Mas se bem me lembro nem demorámos muito. Umas larachas pelo meio e o piu-piu e o Fonseca já tinham a roda montada e tudo. Voltámos à carga.
Qual equipa profissional num contra-relógio disputado por equipas, íamos alternando o lugar de comandante do pelotão. Não que o tenhamos falado, creio. Muito menos combinado, asseguro. Embora nestas coisas da táctica os gurus Codinha e piu-piu tenham normalmente a preocupação de manter o pessoal junto, desta vez penso que tudo surgiu de forma natural. Umas vezes uns, outras outros. O piu-piu algumas, mais do que os outros, porque queria ir à frente para registar na sua máquina fotográfica a passagem dos tangas por determinados locais. Meu Deus… as fotografias estão à espera deste texto há meses...

Com a mesa reservada num restaurante em Vale de Estacas (Santarém) para a hora de almoço, tentámos manter um ritmo razoável. Contudo, ainda antes da primeira paragem a sério, a meio da manhã, na primeira vez em que avistámos a Anita, a Susana, a Patrícia e os quatro miúdos, fomos obrigados a desmontar durante umas boas dezenas de metros. O GPS dizia que era por ali. E de facto era. Mas o mato era mais do que muito. E numas quantas vezes fomos forçados a derrubar obstáculos à força de pontapés mais ou menos certeiros. Mas passámos. E voltaríamos a passar. Seguramente. Com os mesmos arranhões nas pernas ou nos braços. Sem quaisquer dúvidas.

Mais à frente, creio mesmo que muito mais à frente, antes de chegarmos aos carros de apoio, tivemos tempo para cumprimentar o que pensamos seria um grupo de estrangeiros à aventura por terras lusitanas. E para sermos literalmente bafejados por uma lufada de ar… diferente. Era a primeira vez que estávamos a percorrer o percurso certo e, garanto-vos, ir pelo lado alternativo das vias de comunicação tem muito mais piada do que esse alcatrão amassado que representa tudo menos a boa disposição e a capacidade de nos reinventarmos em piadas ou bocas, mais ou menos gastas, que o quadro pintado no horizonte, a possibilidade de olhar este último sem qualquer obstáculo humano a toldar-nos a vista e o vento tão calmo como frio que uma manhã de Sol mas de baixas temperaturas nos permitem e, de facto, dão.
O que nós não sabíamos, de resto, era que os quilómetros que teríamos de fazer depois do primeiro apoio do dia eram tão duros…

… às fugas do improvável
O João Carlos – provavelmente o mais batido de todos nós – tinha avisado ainda enquanto estivemos parados. «O melhor é comer qualquer coisinha mais substancial. Até Santarém ainda vai doer um bocado». Não garanto que tenham sido estas as palavras exactas que ele utilizou. Mas foi o que quis dizer. Disso lembro-me bem. Melhor. Lembrar-se-á um dia quando lhe derem capacidade de memória o senhor meu estômago. Tantos barulhinhos fez, como que querendo fazer concorrência àquele estradão enorme que tivemos de ultrapassar – vocês até podem não acreditar, mas aquilo nunca mais acabava e, pior do que isso, como a chuva há muito que não andava por aí, o piso estava seco e socalcado, o que, como podem imaginar, obrigava os rabinhos a suportar as dores inerentes à coisa. Ao bater do rabinho no selim, claro. Nessa altura, bem me terei lembrado dos conselhos da senhora mãe do Tanga Fonseca, D. Natália. Durante o churrasco do TransCaparica – evento criado pelo sempre bem-disposto Luís, homem socialmente seguro, que não só serviu para mais um treino, mas sobretudo para a nós juntarmos as nossas famílias e nos obrigarmos a um convívio mais alargado – a senhora interpelou-me sem rodeios. «Já perguntei ao meu filho. Mas ele não me respondeu. É ou não verdade que o melhor é vocês colocarem um bifinho fresquinho no rabo antes de irem para a estrada para não andarem aí a sofrer depois? Eu sempre ouvi dizer que sim!», disse-me. Certo, certo, é que ainda hoje, depois de coragem para muita coisa, não tivemos a dita para experimentar tal medida preventiva… se calhar já nos tinha poupado alguns andares mais esquisitos.

A verdade, verdadinha, diga-se, é que foi nesse mesmo estradão que o até então improvável chefe-de-fila começou a dar ares da sua graça. E o facto de estar a dizer que era o improvável não tem qualquer significado negativo. Se vos dissesse que era o Alípio, o João Carlos ou o piu-piu provavelmente não surpreenderia nenhum de nós. Quem sabe mesmo até pudesse ser o Avelino. Agora… o Fonseca? Não, repito, ele não carrega a vassoura na mão. Nada disso. Essa até tem andado mais comigo. Mas daí a zarpar e tornar-se no invariável fugitivo? Com isso, creio, ninguém contava. Mas… foi o que aconteceu. Também ele dono de uma nova senhora, embora esta já rodada noutras mãos, o nosso Tanga Fonseca andava, e andou, verdadeiramente acelera. Lembro-me de que ia com o Avelino, queixando-nos seguramente do socalcado estradão, quando eles nos ultrapassaram. Passaram e… eu passei definitivamente a vê-los… ao longe. Bem, não exagerando. Mas ao longe.

E os quilómetros foram passando. Naquela altura, diga-se, provavelmente a um ritmo mais lento. A fadiga tinha começado a fazer-se sentir. E nós, de facto, nunca tínhamos estado mais do que umas três horas consecutivas em cima das bicicletas. O que também ainda não sabíamos era que nos esperava um prémio de montanha que, para nós, era incrivelmente de primeira categoria. Sim, o Vale de Santarém tinha acabado de ficar para trás, mas… era preciso passar por Santarém e à medida que nos íamos aproximando o pânico ia apoderando-se da minha pessoa. O quê? Ainda vamos subir aquilo? Pois. Ainda tivemos de subir aquilo. Tínhamos no corpinho nesta altura cerca de 80 quilómetros.

O Avelino ficou comigo. Sempre à frente a tentar puxar-me. Eu ía dando o que podia. Jogava como nunca o fiz com as 27 mudanças. Quer dizer, naquela altura jogava apenas com nove. Sim que no que diz respeito à pedaleira era mais do que sabido que a corrente ia naquela mais pequenina… Mais devagar, muito mais devagar do que os quatro loucos. Mas eles também se cansam. Tanto que pararam a meio. Ou um bocado mais acima do meio do prémio. E quando o Avelino e eu ali chegámos… fizemos o mesmo. Desmontámos. «Não parem. Sigam. Continuem que já vos apanhamos» gritaram alguns dos fugitivos que perseguíamos quando dávamos as últimas pedaladas. Está bem, está… Aquela bendita frase já eu, certamente muito mais do que o Avelino, tinha escutado muitas vezes. Não faltava mais nada. Nem sequer ao local onde os outros 4 já repousavam cheguei! Desmontei mesmo uns 15 metros antes! Terei mesmo, garantem-me, proferido algum impropério. «Não paro mas é o ca#”&ho», terei dito. E era verdade… Porque é que não iria parar se até estava mais em baixo do que eles?... Uns minutinhos de descanso, fundamentais para ganhar força para o resto da subida, importantíssimos para confirmarmos estar no caminho certo do restaurante através de uma rápida conversa com duas senhoras residentes naquela rua e… lá regressámos nós à estrada. Sim, nesta parte do percurso não havia alternativa. Não tínhamos nenhuma vereda ou trilho para fugir ao alcatrão. Por muito que tenha custado, tivemos de o gramar. Mas dez minutos depois de termos voltado a pedalar lá estávamos nós a levar com o ventinho na cara e a descansar as pernas, sim, porque antes do repasto tivemos direito ao que vem sempre a seguir a uma grande subida. O quê? Uma belíssima descida!

Iphone sabonete…
E ali estávamos nós. Já não havia muita gente no restaurante. Apenas umas quantas mesas. Com o serviço a correr. Como previamente acordado com os proprietários do espaço, amarrámos as bicicletas umas às outras no espaçoso hall e entrámos à procura de comida! Antes, porém, ainda cá fora, mal tínhamos parado à porta do restaurante, um dos nossos já tinha captado mais um episódio. Daqueles que não podem deixar de estar presentes neste emaranhado de letras, palavras, linhas, frases, parágrafos.
Creio que já tínhamos desmontado todos. Mas alguém, perdoem-me a fraca memória, algum dos nossos teve de aproximar-se de um dos carros de apoio. Naquela altura, digo, continuavam a ser só dois. Os dois 4x4 dos Codinha e dos Fonseca. Dizia eu, alguém teve de ir ao carro de apoio, previamente estacionado no parque de um posto de abastecimento de combustíveis. E, como sempre, havia alguém com queda para o comércio de oportunidade. Uma caixinha a condizer e… «quer um iphone ainda na caixa?». Que nada! Naquela altura era o que menos interessava! Mas aquele, aquele devia mesmo era ser um iphone sabonete. Só pode. Admito não me lembrar do preço. Nem sequer da cara de tão desinteressado vendedor ambulante. Mas isto da generosidade tem muito que se lhe diga. E, garanto-vos, o homem continuava lá, no seu espaço, quando deixamos o restaurante hora e meia depois. A tentar vender. Não sei se o mesmo. Mas continuava a publicitar, mesmo que timidamente, o seu produto.
Nós, entretanto, estávamos com o estômago recuperado. Comemos bem. Bebemos melhor. Ou pelo menos igual. Tratados sempre com um sorriso nos lábios. E umas larachas à mistura. Mas… boa disposição. Uns mais cansados que outros. Seguramente. Mas todos, sem excepção, com o objectivo bem definido. Teríamos de chegar a Fátima.


A foto dos 100…
Voltámos à estrada. Literalmente. Sim. Durante a tarde foram poucos os quilómetros que fizemos por… trilhos. Mas fomos andando. Escusado será dizer-vos que o fugitivo era sempre o mesmo. Quem? Ainda perguntam. Então, aquele que nunca alguém diria que seria… sim, esse, o Fonseca. O homem estava imparável. Ninguém, mas NINGUÉM, o conseguia acompanhar. E o doping era tanto que ele se esquecia de que não tinha gps e que, às vezes, os caminhos enganam. E depois, depois era obrigado a voltar atrás, a juntar-se de novo a nós, e a dar de novo ao pedal para se voltar a isolar. O homem parecia uma pena, ele voava. E nem às bocas respondia. Tamanha era a autoconfiança. Como o invejava… silenciosamente. Sim, gostava, naquela altura, de ter aquela força toda, aquela frescura nas pernas, aquela capacidade de renovar a minha caixa-de-ar, queria ir ali, nem que fosse simplesmente a acompanhar o ritmo dele, a voar baixinho como ele estava a fazer e a surpreender. Mas o engano, o verdadeiro engano da tarde, esse, perdoem-me, seria MEU. MEU, MEU E… meu! E nisso o Fonseca não me ganhou…
Já estávamos a andar há um bom bocado naquela tarde que, entre outras coisas, nos levou a cruzar a A1, via de comunicação não desconhecida para qualquer um de nós. A capacidade de sofrimento das minhas nádegas já estava a ser testada ao limite. Mas gaita, eu tinha de continuar. Sei que, de repente, eu que tinha ficado para trás, dou comigo a entrar num trilho com uma curva, penso que ligeira, à esquerda. Qual não é o meu espanto quando os vejo aos cinco paradinhos… Direi mesmo que em amena cavaqueira. E eu, eu a lutar contra mim mesmo, melhor, contra as ditas, nem sequer prestei atenção. Afinal, soube naturalmente mais tarde, era ali que se cumpriam 100 quilómetros desde que tínhamos começado a pedalar… Nem os ouvi. Melhor, não escutei a justificação para aquela paragem. Eles queriam uma foto. Do grupo. Não é todos os dias que se cumprem 100 quilómetros, claro. Porra. Curvei, vi que ia descer e… nem os ouvi, melhor, embora tenha percebido que queriam que parasse, não prestei atenção ao que disseram. «Não. Agora não paro. Vocês apanham-me à frente». Terei dito. Qualquer coisa como isso. A verdade, verdadinha, era que já não aguentava o rabo. Pronto. Pois… não me apanharam. Desci o trilho como pude. Tentei estar sempre atento a todas as placas. No fundo, como um peregrino nos diria no dia seguinte, aquele era o caminho dos azulejos, e, assim, desde que se esteja atento, basta seguir as indicações dos azulejos. À esquerda ou à direita. Eles, os azulejos, dizem-nos o que havemos de fazer. É assim o caminho de Fátima. Mas, houve um sítio qualquer onde não estive atento e… pronto. Enganei-me. De repente, pensando eu estar no caminho correcto, sai-me qualquer coisa no walkie-talkie… eram eles a chamar-me. Perguntavam onde estava. E eu dizia. Dizia. E nada. Estávamos em caminhos diferentes. E eu teimava. Parei. «O Fernando voltou para trás. Vai à tua procura», ouvi. E eu voltei também para trás. À procura dele. Encontrámo-nos. Mas eles… eles foram bons para mim. Que não fossemos por onde eles tinham ido. Seria duro para mim. Não aguentaria. E o piu-piu veio comigo. «Por aí também se lá vai ter», dizia uma senhora. Tinha-me visto a mim. Tinha-os visto a eles. Sabia perfeitamente onde eu me tinha enganado. Eu não…

Haveríamos de nos encontrar. Mais tarde. Certamente. O que eu não sabia, nem sequer o piu-piu, era que se o caminho que os restantes tinham trilhado era difícil, por ser feito de terra dura e pedra e a subir, o nosso também não o seria menos. Uma parede. Autêntica. Parecida àquela em que as pernas me tinham falhado no Magoito. Desmontei. Percebi depois que o piu-piu também. Mas lá fomos. Ele, ele sempre igual a ele próprio. Homem de barba rija. Preparado. Dominador da sua própria dor. Nunca ninguém o ouve dizer que está cansado. Que quer parar. Nada disso. Se os outros não pararem. Ele também não pára. Nunca. Segue. Aguenta. Ultrapassa-se. Seguimos. Íamos tentando contactar os outros. Saber onde estavam. Onde nos encontraríamos. Alcanena era o destino. Naquele dia. O hotel esperava-nos. Encontramo-nos. Mesmo à entrada de Alcanena. Pedalamos juntos os últimos quilómetros. Um ou dois. Mas o apoio já lá estava. À nossa espera.

Gelo e… descanso
Chegámos. Portanto. Algumas piadas. O contar rápido das estórias da tarde. Arrumar as bicicletas na garagem do hotel. Tirar os sacos dos carros. Fazer o check-in e… subir aos quartos para descansar qualquer coisa antes do jantar. Mas eis que esta alma se lembra. «Arranja-me por favor um saquinho com gelo?», disse à menina da recepção. E passei palavra. O melhor, para quem quiser, é uma banheira de gelo durante uns bons minutos. Do que sei, é o mais indicado para recuperar rapidamente os músculos e prevenir dores incómodas no dia seguinte. Terei igualmente dito. Houve quem seguisse o conselho. Houve quem fizesse o que eu fiz ao quilómetro 100. Nem sequer me ouviram. Mas estavam mais preparados. Andam mais. Muito mais do que eu.

Eu fui fazer o meu gelo. E enquanto o fiz descansei um bocadinho. Vi as chamadas perdidas. Respondi. Às mensagens também. Não eram muitas. Ainda deu para um banho quente e para me deitar um bom bocado em cima da cama. Descansar as pernas e a cabeça. Fechar os olhos. Óbvio.
À hora marcada, um a um, fomos chegando todos à recepção. E lá fomos atrás de um restaurante. Italiano, claro. Que o que queríamos era um bom esparguete. Fosse lá ele feito de que maneira fosse. Os miúdos, claro, não trocariam uma bela pizza por nada. O pessoal do restaurante é que não estava à espera de ter de servir tanta gente àquela hora. A casa estava cheia e, logo à partida, fomos obrigados a esperar uns bons 20 minutos cá fora. O piu-piu sempre preocupado, de menu na mão, ia tentando anotar o que queria cada um. Eu já não vos disse que ele é o guru do grupo? Sempre, sempre preocupado com o facto de não haver falhas de organização. Creio que tomou nota do que queríamos. E passou a informação a quem de direito. O problema é que aquele pessoal não estava mesmo a contar que lhe entrasse um grupo assim pela porta dentro. Despachámos os couverts em menos de nada. Umas quantas imperiais também. Penso. E esperámos, esperámos, desesperámos pela comida. Admito que já não tenho a certeza. Mas os cozinheiros fizeram tudo na hora e… uma hora terá sido, no mínimo, o tempo que fomos obrigados a esperar até começarmos a comer. O que lhes valeu, ao pessoal da pizzaria entenda-se, é que de facto a comida estava óptima – creio que os pratinhos regressaram à cozinha prontinhos para de novo serem usados, não precisavam muito de conhecer o toque suave da água para estarem minimamente em condições de voltarem a ir à mesa – e com isso acabaram por atenuar a nossa mágoa e o nosso espírito revolucionário.
Contas feitas, conta paga, já depois do cafezinho da ordem, como devem calcular, por ali fomos nós, novamente a pé, até ao hotel. Era mesmo hora de descansar. Até porque queríamos começar cedo no dia seguinte. Seriam, pensávamos, os últimos 30 quilómetros. Mas importariam alguma dureza. É que a serra estava mesmo ali à nossa espera. Teríamos de subir, pouco depois de começar a pedalar, subir e subir, descer vertiginosamente para Minde e, como depois de descer há sempre o subir, teríamos de voltar a dar trabalhinho às perninhas para conseguirmos passar novamente pela A1, desta vez por debaixo do alcatrão, e iniciarmos a aproximação final a Fátima – que recta aquela, meu Deus…cheguei a pensar que não acabaria mais.
Antes de nos deitarmos, ainda demos por nós no meio de um bailarico que por ali decorria. Num dos Largos de Alcanena. Entenda-se. Por onde, bem vistas as coisas, tínhamos obrigatoriamente de passar no caminho para o hotel. Algum grupo actuava. Uma multidão, por todos composta, dos mais novos aos mais velhos, passando pelos do meio, como nós, vibrava com os acordes das cordas e o roncar da percussão. Não havia sopro por ali…

Os miúdos vibraram também eles com tudo aquilo. Ainda para mais, o Largo estava bem apetrechado de equipamento destinado às crianças. Tinha até, se bem me lembro, alguns exemplares de máquinas de ginásio, não tão boas naturalmente como as que equipam aqueles, para quem quisesse, ali mesmo, exercitar os seus músculos. Divertiram-se como puderam. Os miúdos, claro. E nós por ali espairecemos também. Por um bocadinho. As dores nas pernas eram algumas. E ainda telefonei à minha mãe, mulher batida nas peregrinações pedestres a Fátima, a marca de uma pomada milagrosa que os peregrinos utilizam para acalmar as dores e dar ânimo às pernas para continuarem o seu caminho. Munido do nome, cravei o Codinha para um raide à farmácia. Depois de ter indagado a senhora da recepção do hotel, claro. Mas… nada. Um papelinho estrategicamente colocado na porta da dita indicava que a partir das 22,30 horas se deveria telefonar para um determinado número de telefone mas, e em quase todas as histórias há sempre um mas, só em casos de emergência. E o nosso não o era, portanto… fomos deitar-nos sem qualquer massagem. Paciência…

Quando estiveres na m… não pies

Acordámos todos bem dispostos. E lá fomos chegando à sala do pequeno-almoço a conta-gotas. O buffet até era variado e apetecível. Não nos fizemos rogados. Fruta, croissants, pão com doce, alguns líquidos também. Cantis igualmente abastecidos. A montanha, a verdadeira montanha, esperava-nos ainda. Ainda tive tempo para entornar literalmente um cantil inteiro junto ao balcão da recepção do hotel, o Codinha e o João Carlos divertiam-se a tentar que os gps se acertassem um com o outro. Um dizia que era para a esquerda. O outro dizia que era para a direita. Estava na hora de nos fazermos à estrada. Sim, é verdade, os últimos quilómetros da expedição iam ser muito mais por estrada do que por trilhos.
E fomos. Cedo começámos a perceber que subir, subir e subir era o que iríamos fazer. E nós lá fomos. Subindo. Creio mesmo que a primeira vez que fomos obrigados a dar às canetas foi logo à saída de Alcanena. E no final desse primeiro prémio da montanha logo fomos assaltados por novas dúvidas. Os gps teimavam em não se entender. Nem eles. Nem os azulejos. Por aqui, por ali, retomou-se o caminho. Não. Não era por ali. Tínhamos de ir por outro lado. Voltar atrás. Aliás. Continuámos a subir.
Não íamos depressa. Tínhamos todo o tempo do mundo. Também. Se bem que queríamos chegar a Fátima durante a hora do almoço. Queríamos almoçar e regressar a Lisboa. Já com as bicicletas em cima dos carros. Naquela altura já tínhamos mais carros de apoio. A Sandra e a Rita já se tinham junto ao grupo na noite anterior e connosco também desesperavam à espera das ditas massas.

Mas, dizia eu, continuámos a subir. Até que tivemos uma pequena descida. Ganhámos – mais honesto é dizer, ganhei – fôlego. Sim, porque depois, depois estava lá outra subida. Se bem que atenuada pela paisagem. Disso ninguém duvide. Parámos. Houve alguém que quis tirar uma fotografia. Ainda bem que se lembrou disso. Contudo, havia mais para subir, muito mais aliás…
E foi enquanto subíamos a Serra de Sto. António que ouvi uma das melhores histórias da minha vida. Talvez o mais belo ensinamento. Quem me haveria de conta-la? O piu-piu, claro. Há muito que ele sabia que eu não estava bem. Que as forças me estavam a faltar. E, como sempre, invariavelmente preocupado com os demais, lembrou-se de me animar.
«Conheces a história do piu-piu? Não? Eu conto-a. Certo dia, um passarinho preguiçoso não quis migrar como todos os da sua espécie faziam. Então, deixou-se ficar e o inverno chegou. Fez tanto frio que ele caiu congelado no chão. Nessa manhã, o menino Zezinho ia a caminho da escola e encontrou o passarinho. Teve pena dele, claro, e meteu-o no bolso do seu blusão, para que aquecesse e pudesse recuperar. A meio do percurso, ouviu-o começar a cantar. Timidamente. Primeiro. Mais alegremente. Depois. Contudo, pouco antes de chegar à escola, Zezinho parou e pensou. “Não o posso levar para a sala! Ele vai continuar a cantar e eu ainda vou ser repreendido! Tenho de o deixar nalgum lado. Ao olhar à sua volta, descobriu um monte de bosta de vaca e ali o colocou, deixando-lhe apenas a cabeça de fora, para ele continuar quente. (MORAL DA HISTÓRIA – NEM SEMPRE QUEM TE PÕE NA MERDA TE QUER MAL) O Zezinho foi para a escola. E o passarinho continuou a cantar. Ao longe, um gato gordo, guloso e grisalho ouviu-o cantar, chegou-se perto dele e tirou-o do meio da merda. Todo contente, o passarinho limpou alguns restos que ainda tinha nas suas penas e quis agradecer ao gato, mas quando se foi a virar para lhe agradecer, o gato engoli-o de uma só vez…

(MORAL DA HISTÓRIA – NEM SEMPRE QUEM TE TIRA DA MERDA TE QUER BEM)
MORAL DAS DUAS HISTÓRIAS – SEMPRE QUE TE SENTIRES CONFORTÁVEL, MESMO QUE ESTEJAS NA MERDA… NÃO PIES»

E pronto, aqui fica a história do piu-piu, no fundo, o que ele, o Fernando, queria dizer-me era para eu não piar, e foi o que fiz… não piei mesmo! E ele ficou por mim baptizado. Nem sequer quando ele e o Fonseca, naturalmente em muito melhor estado do que eu, iam falando comigo, ora para recontarem a história do piu-piu, ora para declamarem poemas do enormíssimo Barbosa du Bocage… O certo, diga-se, era que os centímetros iam passando e, talvez a meio da serra, não sei bem, eles lá descobriram um miradouro onde se podia parar para recuperar algumas das forças até então perdidas. Parámos. Ele, o piu-piu, continuou a picar… mas o pior já tinha passado e eu até me esqueci – esqueci mesmo?!? – que antes já não aguentava mais ouvi-lo declamar Bocage ou contar a história do piu-piu.
Da fruta desidratada, a uma lata de uma famosa bebiba energética, a uma banana e umas quantas barritas, de tudo um pouco ingerimos. O pequeno-almoço, esse, parecia já ter ido com as gotas de suor que pelos poros da nossa pele tinham passado. Aproveitámos ainda para tirar uma foto do grupo completo. Com o horizonte atrás de nós. E tirámos. Não sem que umas quantas se perdessem. Mas a foto tirou-se. E voltámos à estrada.

Continuámos a subir. Mais ou menos compassadamente. Mas sempre a… palmilhar centímetros. De repente, demos com a vertiginosa descida para Minde… uma recta curtinha, primeiro, uma curva apertada à esquerda e a verdadeira descida ali mesmo à nossa frente. Hoje, confesso, já não me lembro de qual foi a velocidade que atingi, mas lembro-me bem do recordista absoluto – o louco das descidas tem um nome, Codinha, e ali atingiu apenas a modesta velocidade de 73 quilómetros por hora… Talvez seja pouco para muitos, nunca para nós… Ou seja, nunca para quem apenas se senta em cima de uma bicicleta e com ela atinge essa marca. Verdade que outros haverá que mais rápidos são, mas, garanto-vos, chegar aos 73 quilómetros por hora é, para nós, uma verdadeira loucura. Porquê? Apenas porque sim… Se conseguirem experimentar, vão saber porquê…
Mas também nesta matéria outro extremo existe,,, e houve quem chegasse lá abaixo quase sem pastilhas nos travões. Quem terá sido?.... Nem mais, aquele de quem o Codinha diz que “desce à velocidade que sobe”, o que até seria um elogio se dissesse que sobe à velocidade que desce, mas não… é mesmo assim… “desce à velocidade que sobe”…. O inesperado piu piu, o mais cauteloso dos Tangas.


Aquela recta interminável…Como sempre, é como se fosse um clássico no léxico de alguns, depois de uma grande descida há sempre uma grande… subida. Pois. Pois é assim mesmo. Minde situa-se no que poderá ser classificado como um Vale. Pelo menos para quem quer ir para… Fátima. Como nós. Por isso, depois de termos dado algum descanso às pernas, ainda de as termos ligeiramente exercitado durante os metros planos que tivemos de percorrer, fomos novamente obrigados a dar ao pedal. E, acreditem, com dar ao pedal quero mesmo dizer isso… Mas, mais uma vez, fomos dando, fomos palmilhando centímetros e aproximando-nos mais do objectivo. Um momento ainda para algumas dúvidas, como não podia deixar de ser, e depressa demos com o caminho.
Depois de muito subirmos novamente, ainda tivemos tempo para um encontro especial… De manhã, quando saíamos do hotel, fazia-o igualmente um grupo de peregrinos. Também tinham pernoitado ali. Pois, não me perguntem como, porque a verdade é que não tivemos coragem para lhes perguntar, mas enquanto nos reabastecíamos de água num café, já no final da subida pós-Minde que antecede a ligação àquela recta que mais parece nunca acabar, eis senão quando nos aparecem do nada esses mesmos peregrinos. Não terá sido só ela, mas a minha alma fico incrédula. Que caminho terão eles feito? Se bem me lembro, entreolhamo-nos, como?, como era possível?, mas era, eles estavam ali. Bem à nossa frente. O homem não se deve ter lembrado da nossa cara. De certeza. Porquê? Porque poucos segundos depois disparou: «Vocês também estão a fazer o caminho dos azulejos, é?». Pois que sim. Que também estávamos a fazê-lo. Mas que ali nos iríamos certamente separar. Eles de certeza que o iam cumprir à risca. Subindo uma ladeira íngreme, que nós havíamos subido antes, e embrenhando-se na mata polvilhada de pedra, até chegarem ao outro lado do monte. Nós não. Tínhamos espreitado a entrada da mata, chegado até a comer algum pó¸mas depressa nos desventurámos. Voltámos atrás. Isto porque o piu-piu, como sempre ele, foi indagar o pessoal do café sobre as várias possibilidades de que ali dispúnhamos. Pela mata? Só? Ou também pela estrada? Sim, pela estrada também dá, mais longe, de certeza, mas também dá. E se calhar os rabos já não aguentam tanta trepidação… Pois. O melhor foi mesmo a… estrada. Mas eles, os peregrinos pedestres, respeitaram em absoluto o caminho dos azulejos. E ali nos despedimos. Que acabassem como nós. Desejámos.

E pronto, voltámos à estrada. A verdade é que a partir de ali não mais a largámos. À estrada. Entenda-se. Ainda tivemos um ossito para roer, mas nada do outro mundo comparado com o que antes já tínhamos roído, e eis que, inexplicavelmente, nos deparamos com um imenso grupo de peregrinos – perdoem-me mas penso que eram estrangeiros – a caminho do mesmo objectivo. Eles naturalmente pela esquerda da estrada, bem na beirinha e em fila indiana, nós na beirinha mas da direita, de modo a que os carros nos passassem sem qualquer problema. Nunca mais me esquecerei daqueles momentos. O piu-piu e o Fonseca já não me largavam, o primeiro sempre que podia empurrava-me – ele tem essa capacidade, multiplica o esforço apenas para não deixar um outro para trás –, o segundo, também gosta de ajudar e de vez em quando, diz ele, «apalpava-me o rabo» mas cheio de boas intenções. Os restantes iam um nadinha à nossa frente. A única coisa que vos posso garantir é que me arrepiei. Fiquei com pele de galinha, como é costume dizer-se. Enquanto passámos pelo tal grupo, tive a oportunidade de escutar com uma clareza e nitidez tais o chilrear dos passarinhos que ainda hoje me sinto marcado pelo momento. Nenhum, mas NENHUM, daqueles peregrinos fazia algo mais do que… respirar. Iam, certamente, em meditação. Ou então, admito como possível também, era Fátima já a tocar-lhes… Sim, Fátima toca em qualquer um, muito mais naqueles que têm FÉ.
Nós continuámos. E continuámos. A determinada altura obrigados a subir a descer as pequenas lombas que marcam aquela recta. Como as rotundas. Sim. Tem algumas. Os da frente abrandaram o ritmo, esperaram por nós, e à entrada de Fátima reagrupámos. Tirar uma fotografia à chegada era o objectivo. Como o era entrarmos no Santuário todos juntos. Fizemo-lo. E depois fomos calmamente até ao Santuário. Mais calmos. Provavelmente mais introspectivos.

À entrada, aquela por onde entrámos, um sinal indicava que a partir de ali, de bicicleta, não. Teria de ir à mão. Parámos. Pedimos a alguém para nos tirar mais uma foto. Todos alinhados. A senhora disse que não sabia, mas que um determinado senhor sabia fazê-lo. Até era fotógrafo. Pois era. Seria. Mas o que lhe demos foi um telemóvel. Ele não sabia como fazer. Mas lá acabou por conseguir. E nós ficámos com a foto.
Depois fomos em pequena excursão até à Capelinha das Aparições. Ali nos juntámos ao nosso pessoal de apoio. Que afinal tinha demorado mais de carro do que nós de bicicleta. Mas isso são contas de outro rosário. Tirámos fotos. Falámos. Ainda me apareceu o meu pai. Para me dar um abraço. E partilhar comigo alguns momentos.


Fomos até aos carros. Montámos as bicicletas em cima dos ditos. Trocámos de camisolas. Vestimos as tshirts dos bttangas. Despedi-me do meu pai. E fomos para o almoço. Verdadeiro espaço e tempo de confraternização. Três mesas para nós. Porque uma não havia. Os carros com as bicicletas à frente do restaurante. Ainda hoje pensamos que o que o proprietário queria era que todos os outros, aqueles que como nós chegavam a Fátima de bicicleta, vissem que era ali, naquele mesmo espaço, que deveriam almoçar… Mas acreditemos que estava bem intencionado. Cerveja preta para alguns, vinho para outros. Não sei quanto tempo demorámos. Também já não interessava… Tínhamos cumprido o objectivo. Tínhamos chegado a Fátima. Era tempo de contarmos as histórias, de sorrirmos e de nos sentirmos orgulhosos desta nossa família.

Ah, esperem, já me esquecia. Não. Não me esquecia nada. Quis mesmo foi acabar assim. Antes, ainda no Santuário, junto à Capelinha das Aparições, fomos todos, creio que todos, acender algumas velas. Já não me lembro de quantas acendi. Foram algumas. Todas por aqueles de quem gosto e com quem me importo. Mas uma foi especial…
Este texto dedico-o a todos, naturalmente à minha família e a todos os outros tangas, e às suas famílias também. Mas, perdoem-me os meus irmãos tangas e mesmo a minha família, dedico-o em especial a alguém por quem um dia disse que haveria de voltar, desta maneira, a Fátima. E por quem acendi uma vela em especial.

Ao meu sogro. Carlos Reis Vieira. Homem bom de quem, de facto, tenho saudades…